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quinta-feira, 8 de maio de 2014

Recordações...

Recordações...
(imagem da net)

Lembro-me como se fosse ontem… andava na escola primária, na quarta classe. Naquele tempo havia crianças que tinham muitas dificuldades, não levavam lanche e muitos deles levavam pão com azeite e açúcar e até com banha. As roupas que vestiam eram dadas por pessoas mais abastadas e os livros eram de outras crianças que estavam mais avançadas. Quando se fala hoje em crise e em dificuldades, lembro-me sempre daquele tempo, algumas colegas de classe, passavam fome e nada se fazia…

Havia uma menina, com quem eu me dava muito bem, já não me lembro do seu nome, era muito morena e tinha o cabelo muito encaracolado. Era muito pobre, trazia sempre a roupa muito suja e rota. Lembro-me de lhe dizer para ela pedir roupa no bairro onde eu morava, pois haviam famílias abastadas que talvez pudessem ajudá-la.

Foi numa tarde, depois de almoço, tocaram à porta, era a minha colega, trazia um saco cheio de roupa. Desci as escadas a correr e sentadas nos degraus da escada começámos a ver o que tinha o saco. Escolhi uma saia, uma blusa e um casaco e disse-lhe para ela tirar a roupa que trazia e que vestisse aquela que eu tinha escolhido. Ela assim fez, nem parecia a mesma, e depois reparei que ela trazia umas galochas pretas e estavam muito sujas, e foi com saliva que eu as limpei. Ficou linda a menina, e nunca mais me vou esquecer do seu sorriso… deu-me um abraço muito forte de contente e a correr foi-se embora mostrar à sua mãe…

Há quem diga que a professora primária é a professora mais importante da nossa vida, porque nos transmite os primeiros conhecimentos… pois para mim foram momentos de angústia que ainda hoje os recordo com enorme tristeza, tudo correu bem até à terceira classe, o pior foi quando chegou a quarta classe… era um ano de exame e a professora começou a dar explicações na sua casa. O meu pai não quis que eu fosse para as explicações, era mais uma despesa, a vida não era fácil além de que, ele podia tirar-me as dúvidas que eu tivesse. Foi nessa altura que as coisas começaram a ficar completamente diferente. Todas as meninas (não havia turmas mistas naquela altura) que não foram para a explicação, ficaram postas de parte. Na sala de aulas só as crianças que pagavam aquelas horas extra curriculares é que eram vistas com bons olhos pela professora, os outros eram objectos de adorno… sempre que era dia de ditado, o meu coraçãozito ficava reduzido a metade, a professora passava de fininho por trás de mim sem eu dar conta e caso eu os outros adornos da escola tivessem erros, era mesmo ali e sem esperarmos que ela nos dava uma bofetada, na cara, na cabeça onde calhasse…

Havia uma menina muito baixinha que mal chegava ao quadro para escrever. Um dia, a professora mandou-a ao quadro e, ela coitadinha com tantos nervos disso que queria ir à casa de banho, a professora não deixou e a pobre criatura quando estava no quadro a escrever, urinou-se pelas pernas abaixo. A professora chamou-a de porca, como se a criança tivesse culpa…

Aquela mulher enorme, muito forte, metia medo… no inverno trazia sempre o pijama, por baixo da outra roupa, quando estava calor vinha de manga curta, lembro-me quando me dava réguadas, aqueles braços gordos abanavam, até parecia que estavam a contá-las...  às vezes dizia-nos se não nos portássemos bem (como é que alguém se podia portar mal com uma criatura daquelas) chamava o marido para nos dar com o ponteiro na cabeça. O marido era o professor dos rapazes, dava aulas na escola ao lado da nossa, um dia esse professor partiu um ponteiro na cabeça de um aluno. Naquele tempo, nunca havia queixas por parte dos pais, estes professores eram vistos como deuses do ensinamento, eram intocáveis e mal daquele que fazia queixa, os filhos é sofriam as consequências. 

Um dia, chegou a notícia que uma colega nossa tinha falecido, andava a limpar a casa com a mãe e lembrou-se de ir limpar o candeeiro do tecto, com um pano molhado, ficou agarrada ao candeeiro com um choque eléctrico e faleceu. No dia do seu funeral, levávamos todas um lacinho preto, pregado na bata branca. Quando chegámos do funeral, já era muito tarde e perguntámos à professora se podíamos ficar dispensadas de fazer os trabalhos de casa, esta respondeu que não e, no dia seguinte qual foi o nosso espanto as meninas da explicação, não foram obrigadas a fazê-los...


 São recordações que guardo com tristeza e com a pergunta no ar, porquê toda aquela crueldade?...